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O QUE FAÇO COM OS MEUS DESEJOS


Caetano Veloso em uma de suas músicas diz que “a gente nunca sabe o que fazer com o desejo.” E é por não saber o que fazer com o desejo que muitos se vêem às voltas com toda uma trama, uma novela mesmo, daquilo que denominam ser a sua história de vida.
O ap. Paulo fala da sua dificuldade em lidar com os seus desejos quando na carta aos Romanos ele diz: “Pois eu sei que aquilo que é bom não vive em mim, isto é, na minha natureza humana. Porque, mesmo tendo dentro de mim a vontade de fazer o bem, eu não consigo fazê-lo.”(grifo nosso - Romanos 7: 18 - NTLH). Agrada-me essa tradução da bíblia que substitui a palavra “carne” por “natureza humana”. Ao usar a expressão “natureza humana” o ap. Paulo trata de algo que vai além do que é visível. Instruído aos pés do sábio Gamaliel (At. 22:3; 5:34), portanto, banhado pela filosofia grega, penso que Paulo toca num ponto nevrálgico da vida: a questão do ser, que na psicanálise tem a ver com o desejo inconsciente.
Este conflito psíquico aparece em outro livro escrito por Paulo, quando ele fala do famigerado espinho na carne (II Cor. 12). Que espinho seria esse? Paulo era inteligente o suficiente para falar o que era possível de ser ouvido e entendido.
O desejo inconsciente pode ser visto como um espinho, um incomodo; levando-se em consideração que ao buscar a satisfação fere a consciência, além de ameaçar a integridade do ego frente, que vive espremido entre a força do desejo que vem do Id e a força de repressão do desejo que vem do superego. Ah! Coitado!
Quando falamos do Ego estamos nos referindo à parte consciente, aquela que julga, avalia e decide. O superego tem a ver com a lei, com as proibições. O desejo está ligado as pulsões mais íntimas, ou seja, ao Id, que desprovido de todo e qualquer senso de valor, busca insistentemente por sua satisfação. O desejo não pede permissão para aparecer e nem está preocupado com o julgamento de outras pessoas. O que ele quer e a qualquer modo é a sua satisfação.
A psicanálise enquanto método de tratamento surge a partir do texto “A Interpretação dos Sonhos” (Freud. 1900). Do que trata este texto? Trata do desejo inconsciente. Para Freud os sonhos são portadores de desejos, mas que não podem ser discernidos por aquele que sonha por conta dos mecanismos de condensação e deslocamento – os sonhos são invariavelmente sem nexos, com cenas interpoladas umas as outras parecendo mais uma grande colcha de retalhos.
Toda esta confusão se deve a atuação da censura em não permitir que o desejo apareça desnudo, clamando por satisfação. Quando uso a palavra “desnudo” não faço por acaso, nada é por acaso, mas propositalmente, pois o desejo inconsciente está intimamente ligado ao desejo sexual.
No nosso meio evangélico falar do desejo sexual é a mesma coisa que falar de um pecado sem igual. Mas quem disse que o crente, por mais santo que seja, não tem desejo sexual? É ignorando o desejo que muitos têm caído em suas armadilhas.
O desejo não satisfeito não aparece somente nos sonhos. Eles também atuam na formação dos sintomas. Psicanaliticamente falando o sintoma surge como forma de conciliação entre as pulsões do Id e as imposições do Super Ego. Os sonhos, assim como os sintomas, se constituem como parte visível de um desejo invisível.
O que admiro na Bíblia é a clareza como ela aborda temas tão significativos. Admira-me, por exemplo, o fato de que Paulo tornou público a sua dificuldade em lidar com o desejo e nem por isso deixou de ser usado por Deus. O ranço da teologia católica apostólica romana medieval, fundada na anulação do corpo, ainda é a que dá mais ibope nas igrejas evangélicas.
O ap. Paulo encontrou uma saída melhor: ele falou o que era possível do seu desejo – até hoje ninguém sabe qual era o espinho na carne que tanto o incomodava. Os espaços existem e devem ser respeitados. Uma coisa é o espaço público outra é o espaço particular e circunscrito da análise.
Ao falar do que era possível do seu desejo o ap. Paulo não somente assume a sua humanidade, como também nos mostra que a maneira bíblica de lidar com o desejo é a Graça de Deus e não o sentimento de culpa. Graça! Graça! Maravilhosa Graça!

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