Você já ofendeu alguém sem querer?
Você já foi ofendido por alguém, que lhe pediu perdão dizendo: “foi sem querer”?
Você já pecou sem querer?
No livro de Levítico interessantes. Cito alguns: “Quando alguém pecar sem intenção,...” (Lev. 4: 2), “Se for a comunidade que pecar sem intenção,...” (4: 13), “Quando for um líder que pecar sem intenção,...” (4: 22), “Se for alguém da comunidade que pecar sem intenção,...” (4:27), “Quando o conscientizarem do seu pecado,...” (4:28). Você já deve ter percebido que esse negócio de “sem querer querendo” não cola pra Deus. Como diz o ditado: “de boa intenção o inferno está cheio”.
Se tem uma coisa que a psicanálise jogou por terra foram as ações equivocadas tidas como não intencionais. Esse resto inexpressivo por muitos foi tomado como matéria prima da psicanálise. Tendo o conceito do sujeito do inconsciente como determinante das nossas ações, a psicanálise vê a causalidade de uma palavra aparentemente desconexa, por vezes vista como inofensiva, como uma palavra portadora de sentido. Para a psicanálise tudo tem um sentido. Talvez daí o jargão: “Freud explica!”
O desejo inconsciente é o que mais nos incomoda de tal modo que: “Por não saber onde colocar o desejo, o sujeito se vê as voltas com toda uma trama, uma novela mesmo, daquilo que denomina ser a história da sua vida.” (Desidério, Ailton – “Para além da demanda: os labirintos do desejo na neurose obsessiva). O desejo insiste por sua realização; só que a realização do desejo sempre é percebida de forma ameaçadora a integridade do “EU”, ou seja, aquilo que nós pensamos que somos.
O Ap. Paulo exemplifica essa divisão que nos constitui quando diz: “Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo.” (Romanos 7:19). Essa é uma expressão claramente psicanalítica, pois aponta para aquilo que marca o sujeito neurótico que é a sua divisão subjetiva entre a satisfação e a repressão do desejo. Invariavelmente o desejo sempre acaba vencendo, daí a expressão paulina “o que faço não é o bem que desejo”. A vontade consciente não pode dominar o desejo inconsciente. Quando muito consegue camuflá-lo.
O desejo se esvazia quando é reconhecido e denunciado através da fala e é isso o que o Ap. Paulo faz não somente neste texto, mas também no texto de II Coríntios 12, quando fala do seu “espinho na carne”. Se o ap. Paulo não especifica o que vem a ser esse tal “espinho na carne” é para demonstrar que reconhecer o desejo não significa praticar o suicídio social e moral.
Ao admitir o seu desejo Paulo reconhece a sua humanidade e conseqüentemente as suas limitações. Sabemos que Deus não se agrada de alguém que se apresente como super; pois pra Ele tal atitude é sinal de prepotência e orgulho, o que, por sinal, foi a causa da queda do diabo.
Deus conhece todas as intenções do nosso coração. Diz o texto bíblico que antes de esboçarmos uma palavra Deus já conhece a frase, o parágrafo, o texto, o enredo (Salmos 139: 4). Mas mesmo assim Ele nos confere a oportunidade e o privilégio de falarmos sobre o que nos incomoda, chateia e aborrece. Ao permitir a fala, mesmo sabendo de tudo, Deus age como um grande psicanalista que cria um espaço para que as verdades mais íntimas que insistimos em camuflar venham à tona, e com ela a cura.
Ao observar o desejo mal do coração de Caim Deus disse: “Por que te iraste? e por que está descaído o teu semblante? Porventura se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante?” Para em seguida denunciar: “se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar.” (Gênesis 6b,7). Mas Caim não falou, não verbalizou o seu desejo e deu no que deu.
Toda a fala é portadora de sentido e para alcançar o sentido de uma fala é preciso ir além da razão; é preciso ir ao fundo do coração. Não se trata de uma tarefa fácil. Como bem disse o poeta Fernando Pessoa: “Eu tenho idéias e razões, / Conheço a cor dos argumentos / E nunca chego aos corações.” Mas viajar é preciso!
Ailton Gonçalves Desidério
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