Não existe nada mais desconcertante e ao mesmo tempo arrebatador do que o desejo. Refiro-me ao desejo inconsciente, transgressor por natureza, que busca a qualquer preço sua realização. O conflito entre o desejo e sua realização se deve ao fato de que nem tudo o que desejamos pode ou deve ser realizado. Ainda bem! Só que o desejo é como um rio que impedido de percorrer o seu curso natural abre caminho numa outra direção, e se por um motivo qualquer a água é represada é preciso saber que o silêncio e a calmaria de uma situação aparentemente controlada pode ser prenúncio de uma tragédia iminente.
Não é fato incomum confundir o desejo com o diabo e a partir daí responsabilizar o demo por atos e ações que apontam para a realização de um desejo reprovado socialmente, biblicamente, mas que insiste por sua realização. Muitos recorrem a fé em Deus como forma de encontrar refúgio para o desejo, mas se a fé oferece amparo é preciso saber que ela também nos convoca para a briga, para o enfrentamento dos inimigos reais e subjetivos, externos e internos.
A covardia não é característica de uma pessoa de fé – “Porque Deus não nos deu o espírito de covardia, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação.” (2º Tm. 1: 7). Coragem não é sinônimo de arrogância, mas de disposição para enfrentar os gigantes que aparecem a nossa frente.
Mira y López em seu livro “Quatro Gigantes Da Alma” diz: “os ‘mortos’ assustam mais que os vivos; os ‘fantasmas’ angustiam e torturam as mentes ingênuas muito mais do que um bandido de carne e osso; em suma, o que não existe oprime mais do que aquilo que existe. Não obstante, seria injusto negar existência a isso que não existe, no sentido comum do termo, pois a verdade é que existe na imaginação, ou seja, criado por quem o sofre e, justamente por isso, não lhe pode fugir, pois seria necessário fugir de si próprio para conseguir-se safar-se de sua ameaça.” Qual ou quais gigantes tem atormentado a sua vida, a sua alma? Você precisa enfrentá-los.
O desejo não é o diabo, mas quando ele se apresenta de forma tão forte, gritando por satisfação, é muito mais fácil vê-lo como sendo encarnação do demo e tentar exorcizá-lo do que enfrentá-lo. É preciso destacar que nem todo o desejo é ruim. Afinal de contas o que seria da vida se não fosse o desejo, a libido, enquanto energia que produz e dinamiza a vida? Uma das saídas para o desejo é a sublimação, conceito complexo na psicanálise, que se apresenta como uma boa saída, pelo menos no que diz respeito ao reconhecimento social.
Creio que uma experiência genuína de fé em Deus pode operar uma ação sublimatória, colocando aquele que passa por tal experiência numa dimensão mais criativa e viva da fé. Mas penso que a maioria dos crentes tenta tampar o sol com a peneira, criando uma capa de santidade, negando os seus desejos, como forma de camuflar o lobo voraz que habita em seu interior. Só que “Através da própria negatividade afirma-se o desejo.” (Camille Dumoulié).
Aprecio muito a coragem do ap. Paulo por ter falado publicamente da sua condição humana, atravessada pelo desejo, quando disse: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. (...) Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm. 7: 19,20; 24). Ao falar desse conflito o objetivo do ap. Paulo não foi chamar atenção para a sua fraqueza, mas sim para a maravilhosa e superabundante Graça de Deus. Por outro lado é através da fala, como uma confissão, que o desejo é tocado, esvaziado, reformulado, superado.
Para enfrentar o desejo é preciso responsabiliza-se por ele. Ninguém pode enfrentar e vencer um inimigo que não reconhece. O grande ganho da teoria psicanalítica, pelo qual ela é infundadamente criticada, se deve ao fato dela ter puxado a cortina do teatro da vida e mostrar pra todos o ator principal de toda uma trama esmeradamente construída pelos mais variados sintomas: o desejo sexual.
Ailton Gonçalves Desidério
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