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QUEM É O CULPADO?


Alguma vez na vida você já se sentiu culpado por algum ato que você não tenha cometido? Já! Então você está inserido no rol dos neuróticos clássicos. Há esperança para você. A culpa é um sentimento comum aos neuróticos e neles cumpre um papel todo especial. No texto “O Mal Estar na Civilização”, Freud diz que toda neurose oculta “uma quota do sentimento inconsciente de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição.”.

Não existe sentimento mais avassalador e invasivo do que o sentimento de culpa, clamando por punição. O pior algoz do neurótico é o próprio neurótico. É ele quem sem se dar conta disso imputa a si mesmo as maiores restrições e os maiores sofrimentos. A culpa aprisiona a alma, ofusca a alegria, anula a esperança. O problema é que, como bem diz Paul Tournier, “todos nós somos, não alternadamente, mas ao mesmo tempo, acusados e acusadores, condenados e condenadores.”.

O sentimento de culpa não busca solução, mas sim punição. Mas se a punição resolvesse o problema o índice de recuperação entre os presos, por exemplo, seria altíssimo, em especial no Brasil. Mas não é isso o que acontece. A punição, em especial a punição desproporcional, acaba gerando a brutalidade, o recrudescimento, tanto do sistema social, como do aparelho psíquico. O que a punição promove é um breve sentimento de satisfação por conta de um delito que deve ser punido. Quem é o culpado que pague o pato.

Já dizia a minha avó que nem tudo o que reluz é ouro. Nem sempre a dor que se sente no peito é a dor de um infarto. Pode ser problema de coluna, gases, etc. Se as artérias entopem pelo excesso de gordura o sistema nervoso pode entrar em curto circuito por conta de uma forte sobrecarga emocional originada, por exemplo, por um forte sentimento de culpa. Se a angústia pode ser simbolizada por uma sensação de aperto no peito, um sufocamento, a culpa pode ser simbolizada por um peso que a pessoa carrega sobre os ombros. Em geral, a postura de uma pessoa dominada por um forte sentimento de culpa é uma postura encurvada.

A questão não é eliminar por completo o sentimento de culpa. A culpa, assim como a ansiedade, o medo, a angústia, em níveis normais, são sentimentos reguladores da vida. Até porque uma pessoa sem culpa é capaz de cometer as maiores atrocidades e continuar levando a vida como se nada tivesse acontecido; que o digam os psicopatas. É preciso tomar cuidado com as propostas miraculosas que prometem o que nem Deus promete: viver uma vida longe de toda dor, de todo e qualquer incomodo físico, emocional e porque não dizer espiritual.

A absolvição externa, do pai, da mãe, ou de qualquer outro, não resolve o sentimento de culpa enraizado na alma de uma pessoa. Pra aquele que quer por quer ser punido não adianta falar: você não é culpado! É preciso que ele mesmo, não sozinho, mas pela via de uma análise, desamarre os nós que sustentam o seu sintoma, alimentado pelo complexo de culpa. É preciso oferecer uma alternativa que vá além da simples punição, pois nesses casos a punição tem o mesmo efeito de um analgésico que produz uma satisfação temporal e superficial.

Certa ocasião escrevi um texto com o seguinte título: “Igreja, Farmácia e Botequim”, onde tracei um paralelo entre esses espaços tão díspares. O que eles têm em comum é a proposta de por vias diversas eliminar a dor da alma, por vezes sustentada pela culpa em suas mais variadas formas. Por exemplo: pelo fim do casamento, quem sabe por conta de uma traição; pela perda de um ente querido, ou por uma tragédia que irrompeu na vida; etc.

A igreja promete o alívio através do exorcismo do principal culpado: o capeta. A farmácia oferece alívio através dos ansiolíticos, antidepressivos e também das pílulas azuis do Viagra. O botequim oferece uma boa dose de álcool para afogar as mágoas da culpa e ao mesmo tempo despertar aquele sentimento de autoconfiança no lugar do triste sentimento de menos valia. As ressacas são certas e homéricas, respeitando-se as peculiaridades de cada uma.

Todo sentimento de culpa tem uma história. É preciso acompanhar essa história pelos mais variados pontos de entroncamento, pelos múltiplos trilhamentos do psiquismo, onde através de concessões espúrias entre o sistema inconsciente e consciente os sintomas são formados. Nesse caso é preciso sim separar o joio do trigo, ou seja, distinguir a causa do efeito.

Quem é o culpado? Quem vai atirar a primeira pedra!

Ailton G. Desidério

Comentários

Celia Maria disse…
Pastor,
Acabei de descobri que faço parte do rol dos neoróticos. rsrs
Seu artigo é excelente. Acabei de ler. Vou reler, reler até entender bem direitinho.
Paz!

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