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SUICIDIO DOS ANJOS


As sete cartas escritas as sete igrejas da Ásia (Ap 2 e 3) começam da mesma forma: “ao anjo da igreja...”. A interpretação mais comum aqui é que elas são endereçadas a essas igrejas, a partir dos seus líderes que são os pastores. Mas que tipo de anjo é o pastor? Ele voa? Sente fome? Sente frio? Tem necessidades? A palavra “anjo” (angelus no latim e ángelos [ἄγγελος] no grego), não tem nada a ver com a figura do pastor, pelo menos no sentido pleno da palavra. A única semelhança é se considerarmos o pastor como aquele que é portador de uma mensagem da parte de Deus.

Sou pastor há trinta anos e nunca consegui voar, transmigrar, nem mesmo levitar. Também nunca consegui acertar todas e nem ficar um dia sem pecar. Pastor é gente, de carne e osso. Uns tem mais carne do que osso e outros mais osso do que carne. Tudo bem! Cada um é cada um. Mas infelizmente algumas pessoas, irmãos em Cristo, acham que o pastor é um anjo, no sentido pleno da palavra. Mas mais grave do que isso é quando o pastor pensa desse modo, ou seja, que ele é super espiritual, um super-homem, e que por conta disso pode romper todas as leis da natureza. Aí complica. Na psiquiatria isso tem nome: delírio de grandeza!

Ultimamente muito se tem falado sobre o suicídio de pastores. Infelizmente o suicídio tem sido uma realidade crescente na sociedade contemporânea. A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva em seu livro “Mentes depressivas”, apresenta os seguintes dados em relação ao suicídio: 1º) “Em 2012, aproximadamente 804 mil pessoas se suicidaram ao redor do mundo. Isso equivale a dizer que 2.200 tiraram a própria vida naquele ano, em um intervalo médio de tempo de quarenta segundos entre um suicídio e outro. 2º) Toda vez que uma pessoa se suicida, outras vinte tentaram e não obtiveram o resultado por elas desejado. Isso significa que há uma tentativa a cada dois segundos ao redor do mundo. 3º) O número de pessoas que cometem suicídio hoje já supera o número de pessoas que oficialmente vão a óbito por homicídio ou mortes em guerras ou desastres naturais – situações que, somadas, tiram 669 mil vidas por ano.”

Falar que um pastor se suicidou é algo novo. Mas em primeiro lugar é preciso ressaltar que "pastor" não é nome próprio, é adjetivo, um título dado a um homem ou uma mulher que se sentiu chamado para o ministério pastoral. Por que estou fazendo essa ressalva? Para realçar um mal que afeta os pastores que é a despersonalização, ou seja, um homem sem nome. Pastor é gente como qualquer outra pessoa: ri, chora, as vezes está animado, outras vezes desanimado, tem sonhos, desejos, necessidades espirituais, emocionais e físicas como qualquer outra pessoa.

Sem dúvida que a carga emocional que pesa sobre os ombros do pastor é muito grande e se ele não souber trabalhar com essa carga é praticamente certo que terá problemas físicos e emocionais. Dentre esses problemas podemos destacar a depressão, vista como um mal deste século. Uma das justificativas mais comuns para o suicídio é a depressão. Sem dúvida que uma depressão grave suscita sentimentos suicidas que podem ser levados ao ato. No entanto, a bem da verdade, não podemos dizer que todos os suicídios acontecem em virtude da depressão.

Em que reside a pressão que pesa sobre os ombros do pastor? Com certeza não é o Evangelho. Até porque a proposta do Evangelho é aliviar o peso, a carga. A grande pressão que pesa sobre o ombro dos pastores e de muitos outros cristãos é o espírito religioso, caracterizado pela cumprimento da lei. Já há muito tempo que muitas pessoas confundem Evangelho com religião e igreja com prédio.

Biblicamente uma coisa não tem nada a ver com a outra. O Evangelho bíblico é potência, liberdade, vida plena e abundante. Jesus Cristo mesmo disse: "Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância". (Jo 10.10). O Evangelho bíblico é Graça e é de graça. Não tem nada a ver com o peso da lei. O ap Paulo escrevendo para a igreja de Éfeso disse: "Pois pela graça de Deus vocês são salvos por meio da fé. Isso não vem de vocês, mas é um presente (Graça) dado por Deus." (Ef 2.8). Escrevendo para a igreja de Corinto, disse: "a letra mata, mas o espírito vivifica" (2 Co 3.6).

O Evangelho da Graça é interior, ou seja, de dentro para fora. A religião é externa e exerce sua força de fora para dentro. Por ser interior e não exterior o Evangelho da Graça não está preso ao que as pessoas vão ou não deixar de pensar. O compromisso daquele que vive o Evangelho da Graça é com o doador da Graça e não com as pessoas. Penso, no entanto, que estamos vivendo um Evangelho sem Graça. Um evangelho baseado na culpa, na condenação, no dedo em riste, um evangelho hipócrita. Um evangelho que ao invés de promover a vida, tem gerado a morte.

Deixar de viver o Evangelho na perspectiva bíblica da Graça de Deus produz um mascaramento de todas as características humanas, a saber: a dor, o sofrimento, o desejo, inclusive e em especial o desejo sexual. O espírito religioso pode ser muito bonito para quem vê, mas quem vive preso e amarrado a ele é um grande sofrimento. O problema é que o pastor lida com isso o tempo todo, a partir das expectativas dos outros, daqueles que precisam idealizar uma pessoa para que possam se ver nela.

Toda tensão é produtora de doenças. Assim como a paz interior é produtora de saúde. Se um crente, pastor ou não, mascara os seus sintomas em nome da fé, com medo do juízo de alguns santarrões, que dizem com suas línguas ferinas: "como pode um um crente, ainda mais um pastor ficar doente, sentir-se deprimido, angustiado e sem fé?"; é porque para eles o Evangelho se tornou refém da lei, da aparência, do exterior em detrimento do que é interior. Isso não é Evangelho é escravidão da lei. A tensão provocada pelo sentimento religioso é geradora de um sofrimento psíquico, que pode gerar uma depressão que em casos extremos pode levar a pessoa a atentar contra a própria vida. Não estou dizendo que esta é a grande causa do suicídio entre pastores e cristãos em geral. Penso que não é, mas acho que algo que vale a pena considerar.

Quando os dados do site de relacionamentos Ashley Madison, cujo lema é "a vida é curta, curta a vida", vazaram, o nome de várias pessoas, o nome do pastor John Gibson foi exposto e por conta disso ele tirou a própria vida. Segundo relato da sua esposa, Christi Gibson, ele deixou um bilhete dizendo estar se sentindo profundamente envergonhado e não suportava mais a depressão que invadiu sua alma e preferiu dar fim a sua vida (http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/09/pastor-americano-se-suicida-apos-nome-divulgado-em-site-de-adulterios.html).

Ora, que pecado pode justificar o suicídio de uma pessoa se Jesus morreu na cruz por todos os nossos pecados? A questão está clara: o problema não é do Evangelho, mas da lei, do espírito religioso e suas muitas cobranças. Se os membros da igreja deste pastor agiram ou não com falta de graça e misericórdia, se os colegas pastores o abandonaram, isso não sabemos. Mas sejamos inocentes e admitamos que é bem provável que isso tenha ocorrido. O que esse episódio revela é que ser vítima do juízo e julgamento das pessoas não é fácil. O rei Davi dá um claro exemplo disso, quando disse: "Prefiro cair nas mãos do Senhor, pois é grande a sua misericórdia, e não nas mãos dos homens". (1 Crônicas 21:13).

Será que se vivêssemos em um ambiente mais dominado pela Graça de Deus e menos pelo espírito religioso as pessoas não se sentiriam mais a vontade em compartilhar suas fraquezas e até mesmo pecados? Graça tem a ver com brilho. Será que se vivêssemos mais na Graça de Deus não perceberíamos com mais facilidade o brilho ou a ausência dele na vida de um irmão e até mesmo na vida do líder, do pastor. Não como forma de julgamento, mas com espírito de ajuda. A depressão pode ser caracterizada por uma ausência de brilho no olhar. Os olhos se constituem nas janelas da alma. O que tem impedido de vermos a presença ou ausência desse brilho no olhar das pessoas, dos nossos irmãos, dos nossos líderes? Será que são os megapixels dos smartphones e das grandes telas de led?

O mundo sempre foi hipócrita, mas parece que está ficando mais brutalizado. A indiferença em relação ao sofrimento e a dor do outro é sintoma disso. Vivemos uma época em que a individualidade tem sobrepujado a coletividade. Como diz o ditado popular: "farinha pouca, meu pirão primeiro.". Infelizmente esse pensamento tem contaminado a igreja de Cristo. O problema do pastor, do irmão, é dele e tão somente dele. A solidariedade ainda existe, mas como ilhas no meio de tanta indiferença. É verdade que muitas igrejas estão cheias, mas na maioria das vezes com muitas pessoas que estão tão somente preocupadas com as necessidades delas, com "a bênção delas". Quantas pessoas estão indo aos cultos para receberem as bênçãos de Deus, como se elas fossem jogadas para alguns poucos que levantam mais alto suas mãos, que gritam mais alto e até mesmo empurram o pobre coitado que está do lado, para que possam pegar "a sua bênção". Pior que todo esse frenesi é alimentado por pastores aloprados, doentes, que gritam: "Pega a bênção aí, meu irmão!". Que tipo de fé é essa? Fé fria. Fé hipócrita. Fé sem Graça, porém cobrada.

Que anjo não se suicida, isso é fato. Mas o pastor que pensa que é anjo, no sentido pleno da palavra, pode numa situação desesperadora vir a cometer tal desatino. A questão não é esperar acontecer para depois procurar saber porque aconteceu. O que precisamos fazer é agir antes que esses fatos lamentáveis aconteçam. Como? Sugiro uma reflexão a partir das seguintes questões: 1º) o que podemos fazer para ajudar as pessoas, os crentes (pastores e líderes em geral), que silenciosamente estão desistindo da vida, perdendo o brilho, e por conta disso considerando o suicídio como única saída possível para o sofrimento que estão enfrentando? 2º) Como identificar os sintomas de falência emocional no semblante dos nossos irmãos em Cristo e daqueles que a despeito de estarem a frente, nos púlpitos das igrejas, são pessoas frágeis como qualquer outra? 3º) Como usar a fé como fator de promoção da saúde mental? Ou seja, como ser cristão sem ser religioso? 4º) como lidar com a dor de viver (“no mundo tereis aflições”), frente a tirania da felicidade e da fé auto proclamada pela expressão comum "é só vitória", imposta pela falsidade do marketing gospel?

Ailton Desidério

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