Depois do almoço farto, onde todos saem satisfeitos, a pergunta que a maioria das donas de casa fazem é: “o que eu vou fazer com o resto?”. Isso porque em geral a porção da comida preparada é sempre maior do que a soma de todos os estômagos presentes. Uma maneira que encontraram para lidar com a sobra da comida é promover um outro encontro chamado criativamente de “enterro dos ossos”.
Uso essa ideia para falar que na vida sempre existe um resto que transborda para o dia seguinte. Resto emocional que as vezes vem de dias, semanas, meses e anos. Lidar com o resto de ontem das nossas emoções não é uma tarefa fácil. Como seria bom se pudéssemos fazer um “enterro dos ossos” dos nos nossos restos emocionais. Mas os restos emocionais não podem ser queimados, na verdade, quando não tratados devidamente eles queimam por dentro.
A vida é constituída de encontros e desencontros que sempre deixarão um resto. Encontros bons, positivos, deixam restos de alegria, satisfação e felicidade. Já os desencontros, que contraditoriamente acontecem a partir dos encontros, deixam restos de tristeza, mágoa, dor e ressentimento. O que fazer com eles?
O resto da comida de ontem pode dar uma boa mistura e as vezes até ficar com um sabor mais agradável do que a comida preparada anteriormente. Mas quando o resto de ontem é uma questão emocional mal resolvida, digerida, o estômago queima como se tivesse um dragão esbaforido lá dentro.
Na vida, como diz um provérbio grego, o bom seria “começar cada dia como se fosse o primeiro, e encerrar como se fosse o último.”. Em termos ideais seria ótimo. Mas na prática não é assim. Até porque sem um resto de preocupação, de ansiedade e porque não dizer de angústia a vida seria uma pasmaceira só. Não haveria movimento porque é justamente esse resto que nos incomoda que ao mesmo tempo nos movimenta.
Uma reação muito comum da pessoa que quer se ver livre do resto de um sentimento que ficou entranhado em sua mente e azedou, virando assim um baita ressentimento, fruto dos desencontros da vida: uma traição, uma fofoca, uma briga, etc., é tentar remover esse ressentimento dizendo repetidas vezes pra si mesma: “eu não vou pensar mais nisso, não vou pensar, não vou, não vou, ...”. Só que tentar combater um ressentimento pela via desse confronto mental direto não resolve o problema, muito pelo contrário, potencializa. Se repetir a frase “eu sou feliz” inúmeras vezes resolvesse o problema da alma não haveria mais uma só pessoa infeliz no mundo.
O resto de comida que fica de um dia para o outro só pode ser reaproveitado se estiver em boas condições. Comer comida estragada só para não jogar fora pode causar um seríssimo problema para a saúde. Com os sentimentos é mais ou menos a mesma coisa. Quando um sentimento se torna um ressentimento o corpo grita. “Os sentimentos têm sua influência sobre o corpo. A alegria faz bem para o corpo. E quem cede espaço demais para as tristezas de seu coração prejudica seu corpo. Uma mente triste acaba com o corpo.” (Anselm Grün – “Sobre o prazer da vida).
Vamos ser práticos. Como lidar com os restos emocionais negativos que ficam gravitando na nossa mente por dias, semanas, meses e as vezes anos a fio? Falando! Fala que melhora! Sentimentos precisam ser expressados, vomitados e só tem uma forma de fazer isso: falando. William Shakespeare, disse: “Não posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a respeito.”. Sentir é natural. É instantâneo. Mas guardar ou não um ressentimento é uma decisão que cada um escolhe.
Em se tratando de sentimentos, de feridas emocionais, a reação mais comum é sofrer calado e morrer calado. E morre mesmo! Você pode estar pensando: “mas seria tão bom se não sobrasse nada do dia anterior”, ou seja, se tudo sempre acontecesse na medida certa, do modo certo, de acordo com o planejamento minuciosamente elaborado. Enfim, seria tão bom se os encontros fossem sempre positivos e que a alegria e a felicidade sempre reinassem. Ei! Acorda! A idade da inocência já acabou.
Alice, por exemplo, já saiu do país das maravilhas e agora está perdida na cidade grande buscando uma vaga no competitivo mercado de trabalho; infelizmente ela perdeu aquela áurea de alegria, paz e serenidade. Branca de Neve por sua vez foi abandonada pelo príncipe que tanto amava ou quem sabe ainda ama; grávida e com dois filhos pequenos ela está correndo atrás da pensão alimentícia na vara de família. A última casa onde os três porquinhos estavam refugiados pegou fogo quando eles estavam dormindo; o lobo voraz não esboçou nenhum pingo de sentimento, muito pelo contrário, já foi procurar novas presas fragilizadas em outos acampamentos e invasões da cidade. Trágico? Não! É a vida em preto e branco. Na verdade, com mais tonalidade de preto do que de branco.
E aí, o que você está fazendo com o resto que sobrou de ontem? Vai continuar remoendo as experiências ruins? Vai continuar calado? Vai fazer o quê?
Agradeçamos a Deus todo dia pela Graça do pão nosso de cada dia. Mas peçamos a Ele sabedoria e coragem para lidarmos corretamente com o resto de ontem, ou seja, o resto nosso de cada dia.
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