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A SUPERANDO AS EXPERIÊNCIAS TRAUMÁTICAS

A vida é traumática por natureza. Já escrevi um artigo sobre isso. São muitos os fatores que podem gerar um trauma: desastres naturais, exposição a situações de violência, acidentes, perdas, abuso sexual etc. Por conta de todos esses fatores, concluo que estamos vivendo numa sociedade de pessoas politraumatizadas, o que justifica o grande e crescente número de casos de angústia, ansiedade, fobias e tantos outros sintomas psíquicos — e até mesmo somáticos — relacionados à síndrome pós-traumática. “Síndrome” é um termo que vem da medicina e caracteriza um conjunto de sinais e sintomas que podem ter mais de uma causa. (Dic Aurélio) A neurose traumática, como diz Alain de Mijolla, "designa um estado psicopatológico caracterizado por diferentes transtornos que sobrevêm, num prazo mais ou menos longo, em consequência de um intenso choque emocional." Freud foi um dos primeiros a destacar que os traumas que tanto atormentam a nossa vida têm origem na infância, mais especificamente no encontro com a sexualidade. O trauma é um tipo de nó que precisa ser desfeito para que a energia psíquica retida a partir da experiência traumática volte a fluir normalmente. O trauma psíquico não pode ser tratado com um remendo no psiquismo. A alma não pode ser engessada. A alma é fluida — e é nessa fluidez que reside a saúde emocional. Vamos usar um exemplo simples para ilustrar a especificidade do tratamento do trauma psíquico. Imagine um vazamento que se espalha por uma parede da casa, em consequência de um entupimento na parte hidráulica. Não se resolve esse problema apenas colocando massa no ponto onde a água está vazando. Para eliminar o vazamento e impedir que a estrutura da casa seja comprometida, é preciso desobstruir o encanamento. O trauma, quando não elaborado, cria uma obstrução emocional — um engasgo — que mina a estrutura psíquica e afeta profundamente a qualidade de vida. Atendi uma paciente que buscou tratamento por apresentar sintomas antissociais, caracterizados por explosões de agressividade acompanhadas de crises de ansiedade. À primeira vista, era uma pessoa pacata, tímida — mas nem sempre a quietude é sinal de paz interior; por vezes, é sinal de que a pessoa está à beira de explodir. Lembro-me de quando fiz estágio no hospital psiquiátrico Nise da Silveira, na enfermaria de acolhimento à crise. O psiquiatra responsável pelo setor deu a seguinte orientação: "Não se preocupem com os pacientes que ficam gritando, cantando, falando coisas estranhas pelos corredores. Isso é sinal de que estão em processo de cura. Agora, prestem atenção no paciente que só quer ficar isolado em seu canto." O silêncio sempre transmite uma mensagem — e, às vezes, não é uma boa. É preciso estar atento. A tarefa da análise é criar condições para que o paciente seja acolhido e fale do seu sofrimento. No caso desta paciente, ela conseguia situar o fato, mas não conseguia discorrer sobre ele. Sempre que se aproximava da experiência traumática, ficava em silêncio. O silêncio dela era a pista de que algo muito forte estava sendo guardado a sete chaves dentro de si. No decorrer do tratamento, falou superficialmente sobre uma história de violência sexual na infância. Falou, mas não aprofundou. O inconsciente nunca se abre de modo totalmente voluntário. Em geral, ele se abre e fecha em segundos, minutos. O superego está sempre vigilante, e o ego morre de medo dele. Lembro da sessão em que essa paciente chegou e não quis falar. Respeitei e sustentei o silêncio. Sustentar o silêncio numa análise não é tarefa fácil, por dois motivos: 1º) Em geral, as pessoas procuram a análise buscando respostas claras sobre o que devem ou não fazer. Alguns profissionais da área caem nessa armadilha e, por isso, não conseguem chegar à origem do trauma. 2º) A máxima da psicanálise é que o analista se forma no divã. Ou seja, ele precisa trabalhar suas próprias questões para ter recursos internos e não interferir, nem se misturar com o conteúdo do paciente. Por isso, sustentar o silêncio do analisando — até que ele se mova para falar do que o aflige — é uma atitude fundamental do analista. Enfim, nessa sessão em que sustentei por alguns minutos o silêncio sepulcral da paciente, ele foi interrompido por um grito horripilante e estridente. Foi um dos gritos mais intensos e sofridos que já ouvi na vida. Através dele, ela colocou para fora todo o lixo emocional acumulado — lixo que alimentava as crises de agressividade e ansiedade que prejudicavam sua qualidade de vida. Não quero passar a impressão de que o objetivo da psicanálise é promover alívio apenas pelo grito ou por manifestações somáticas. O grito da paciente apareceu na sessão como forma de significação. Representava a emoção aprisionada por conta da violência sexual na infância. Esse grito foi, na verdade, o primeiro passo para a elaboração do trauma por meio da fala. Tudo o que é reprimido na vida psíquica, mais cedo ou mais tarde, vem à tona. É assim que surgem os mais variados sintomas, das mais variadas doenças. Nesse sentido, o sintoma é um sinal de uma não-fala, que se comunica por outras vias. O que se espera numa psicanálise é que, por meio da fala, esse sintoma seja desbastado, escoado, expressado. O nosso mundo interior não é um depósito de lixo, mas um jardim a ser cultivado — um jardim que pode ser adubado com o lixo emocional ressignificado de modo analítico e terapêutico. Isso não é poesia, é realidade. Como disse Adrián Santarrelli, "todos nascemos com o desejo de ser felizes e fecundos", mas a roseira que nos encanta com suas belas e perfumadas flores tem espinhos. A vida também tem espinhos que ferem a alma. O objetivo da análise não é arrancar os espinhos da vida, mas cicatrizar as feridas por eles causadas e apresentar uma melhor forma de lidar com eles. A melhor maneira de lidar com o trauma é evitá-lo. E a vida ensina que não vale a pena comprar todas as brigas. Isso não significa covardia, mas a sabedoria de escolher bem as batalhas. Contudo, mesmo com todo o cuidado, não temos como evitar todas as experiências traumáticas. Como bem diz o poema de Francisco Otaviano: “Quem passou pela vida em branca nuvem E em plácido repouso adormeceu, Quem não sentiu o frio da desgraça, Quem passou pela vida e não sofreu, Foi espectro de homem, e não homem, Só passou pela vida, não viveu.” Traumas existem — e, uma vez instalados, precisam ser trabalhados para que possam ser superados. Abafar sentimentos legítimos como raiva, ira, frustração ou decepção não resolve. Só agrava. É preciso reconhecer e aceitar a experiência traumática para poder superá-la. É necessário buscar ajuda profissional nesse processo de reconhecimento e tratamento. Nem todos os traumas podem ser evitados, mas, por outro lado, também não existe trauma que, uma vez enfrentado, não possa ser superado.

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