Pular para o conteúdo principal

EROS E PSIQUÊ: AMOR COM ALMA E AMOR DESALMADO

Amor é uma palavra simples e complexa. Simples por ser amplamente utilizada. Complexa porque só tem sentido quando está relacionada a outra pessoa. Usado de modo isolado, solto, “amor” é uma palavra vaga e sem sentido. O amor não existe sozinho. Amor, do verbo amar, só existe quando é conjugado: eu amo, tu amas, ele ama, nós amamos, vós amais, eles amam. Simples assim. Será? No português, usamos a palavra “amor” para descrever diversas situações, com os mais variados sentidos. No grego, empregam-se três palavras com significados específicos para o que chamamos, genericamente, de amor: ágape — amor divino; philos — amor fraterno; eros — amor apaixonado, sexualizado. É sobre esse tipo de amor, sobre Eros, que quero falar. Farei isso a partir do mito grego entre Eros e Psiquê, como forma de destacar que não existe Eros sem Psiquê. Ou seja, não existe amor sem alma. Antes, porém, julgo importante destacar que eros, de onde vem a palavra erotismo, e pornos + graphô, origem da palavra pornografia, embora estejam relacionadas à sexualidade, são termos e conceitos bem distintos entre si. Eros — o erotismo — não tem nada a ver com pornografia. Só para dar um exemplo, encontramos na Bíblia um livro que narra a história de amor entre um homem e uma mulher, com uma linguagem poética de conteúdo erótico. Refiro-me ao livro dos Cânticos. Na Teogonia de Hesíodo, Eros é visto como um jovem muito bonito e um deus de grande importância, que surgiu a partir do caos. Muito interessante a simbologia do amor organizando o caos. Talvez por isso os amantes costumem dizer: “Minha vida estava um caos; mas, quando conheci você, tudo mudou”. A história de Eros está ligada à de uma jovem muito linda chamada Psiquê, filha de um rei muito importante. Uma observação que julgo relevante: Psiquê pode significar tanto alma quanto borboleta. Alma tem a ver com beleza e leveza. Nesse sentido, o amor que pesa e desassossega a alma não é amor — é fardo. É peso. Psiquê tinha duas irmãs que se casaram. Mesmo sendo a mais bonita, Psiquê não conseguia um pretendente à sua altura. Tinha muitos admiradores, mas nenhum deles se aventurava a declarar-se para a bela jovem, julgando-se inferiores. Numa linguagem contemporânea, talvez pensassem: “É muita areia para o meu caminhãozinho”. Foi então que o pai de Psiquê recebeu um oráculo que dizia que ela precisaria ser colocada no alto de um monte para ser desposada por um monstro. Caso não fizesse isso, todo o reino seria destruído. Ao ser abandonada à triste sorte no alto do monte, um vento forte e suave chamado Zéfiro compadeceu-se da jovem e a levou para um lindo palácio, com colunas de mármore e folheado a ouro. Chegando lá, Psiquê foi conduzida ao seu aposento: um quarto amplo e deslumbrante. Ao cair da noite, sentia a aproximação daquele que considerava ser seu esposo, o qual, segundo o oráculo, seria um monstro. Mas, com o passar das noites, passou a se sentir muito bem ao lado do esposo desconhecido, por causa do amor e carinho com que era tratada. A condição imposta por Eros, o amante de Psiquê, era que ela nunca poderia ver o seu rosto — uma pausa. Estaria aí a origem da máxima que diz que o amor é cego? Fica a questão especulativa. Tudo ia muito bem entre Eros e Psiquê, entre o amor e a alma, até que Psiquê recebeu a visita de suas duas irmãs. Quando chegaram ao palácio, ficaram deslumbradas com tanta beleza — e desconcertadas com a felicidade de Psiquê. Tomadas pela inveja e conhecendo o pacto entre Eros e Psiquê — entre o amor e a alma, nunca se esqueça dessa correlação —, incitaram Psiquê a quebrar o acordo, dizendo: “Você está dormindo com alguém que não sabe quem é?” Assustada e com medo, Psiquê rompe o pacto firmado com Eros. Não há nada que fira mais o amor do que um compromisso assumido e depois traído. Assim, numa determinada noite, Psiquê acende uma vela para ver o rosto do esposo, esperando encontrar um monstro. Fica surpresa, extasiada, ao perceber que se tratava de um jovem muito bonito. Eros, ao ter o rosto queimado por um pingo da vela, acorda assustado. Ao ver que Psiquê havia quebrado o pacto, abandona-a imediatamente. Quebrar um pacto de amor é sempre traumático. Mas Eros e Psiquê não conseguiam viver um sem o outro. A máxima que apresento aqui é esta: amor e alma são inseparáveis. Onde há amor, deve haver alma. Amor sem alma — um amor desalmado — não é amor. Ambos sofriam por estarem afastados. É então que Zeus intervém e reaproxima Eros de Psiquê, oferecendo a ela o dom da imortalidade. Penso que essa intervenção mostra que Eros comporta uma dimensão do ágape — do divino, do transcendental, de Deus. O mito não diz se Eros e Psiquê viveram felizes para sempre — isso é invenção de Hollywood. Mas afirma que ambos passaram a ter o estatuto da imortalidade. O amor é eterno? Se considerarmos seu aspecto divino, eu diria que sim. Mas essa é uma questão que deixo para você pensar. O que destaco, a partir desse mito grego, é que o amor, no sentido pleno da palavra, não existe sem a alma. Onde há amor, tem que haver alma. Afinal, amor desalmado não é amor: é prostituição! 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O INFARTO DA ALMA

Existem várias maneiras de entendermos a depressão. Como já disse em vídeos anteriores, a depressão não é resultado de um único fator, mas sim de vários fatores. Hoje, quero falar da depressão como consequência do infarto da alma — um estrangulamento interior causado pelo represamento das emoções e pelos traumas da vida que não foram devidamente elaborados. Para explicar essa ideia, quero fazer uma analogia com o que conhecemos da medicina. O infarto do miocárdio é uma doença caracterizada por placas de gordura que se acumulam nas artérias coronárias, obstruindo a circulação sanguínea. Quando uma dessas placas se desloca, forma-se um coágulo que interrompe o fluxo de sangue, levando à diminuição da oxigenação das células do músculo cardíaco (miocárdio), o que resulta no infarto. Na página da Sociedade Brasileira de Cardiologia, há um cardiômetro que marca, em tempo real, o número de pessoas que morrem no Brasil por problemas cardíacos. A média é de um óbito a cada 90 segundos. E o ...

A FORÇA DE ATRAÇÃO DO NADA

Certa ocasião, quando participava de um congresso na cidade de Gramado, aproveitei a oportunidade para explorar as belezas daquela região. Foi então que conheci uma das vistas mais impressionantes do Brasil: o cânion Itaimbezinho. Uma paisagem simplesmente deslumbrante. Se você ainda não conhece, vale a pena conhecer. Mas tome cuidado: a altura do Cânion Itaimbezinho é de 720 metros e, como você sabe, o abismo atrai, deixa a gente meio zonzo e... O que existe no abismo para que ele exerça tamanha força de atração sobre as pessoas? Não existe nada. Mas o abismo é um nada que atrai. Como disse Nietzsche: “Quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você.” O nada, o abismo, tem a ver com a força especulativa e fantasiosa do desejo. O desejo é o canto da sereia que atrai os viajantes incautos. É por sermos seres do desejo que nos aproximamos do abismo. Somos atraídos por esse “nada pleno” que é o desejo — que, em algumas ocasiões, nos coloca em verdadeiras enrascadas...

A GOTA D'ÁGUA E A DEPRESSÃO

Coitada da última gota d’água. Quando a caixa d’água transborda, a culpa é sempre dela. Daí a expressão: “Essa agora foi a gota d’água que faltava.” E lá vai a coitada da gota d’água levando a culpa pelas demais gotas que, durante muito, muito tempo, foram se acumulando, até que a fatídica gota caísse no copo. Segundo uma tabela da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), um gotejamento lento produz uma perda estimada de 10 litros de água por dia. Se for médio, 20 litros. Se for rápido, 32 litros. Faça as contas e veja quanto de água pode ser desperdiçado com um simples pinga-pinga. E quando essa água toda se acumula — seja em um copo, seja em uma caixa d’água — não tem jeito: um dia vai estourar. Vai transbordar. Quando as emoções “negativas” (uso as aspas porque, desde que sejam admitidas, não podem ser chamadas de negativas) se acumulam no mundo interior de uma pessoa, são como gotas d’água: mais cedo ou mais tarde, acabam transbordando. E é nesse momento...